A seletividade alimentar em crianças tem vindo a tornar-se uma preocupação crescente para pais e profissionais de saúde. Esta condição, caraterizada pela recusa persistente de determinados alimentos, pode acarretar consequências sérias para o desenvolvimento e bem-estar dos mais novos. Com o intuito de compreender melhor esta problemática e as estratégias para lidar com ela, entrevistámos Sophie Matias, terapeuta da fala e coordenadora da Clissol, um centro médico e terapêutico com especialização multidisciplinar nesta área.

Afinal o que é a seletividade alimentar?
A seletividade alimentar é uma condição na qual a criança tende a ser restritiva em relação aos alimentos que aceita consumir. Esta condição pode manifestar-se desde tenra idade e pode dificultar a introdução de uma variedade adequada de alimentos na dieta dos mais novos. É comum que crianças seletivas rejeitem certos alimentos, levando a uma dieta limitada e, por vezes, desequilibrada. Essa recusa pode incluir alimentos essenciais, como carne, arroz, legumes e outros grupos alimentares importantes para um crescimento e desenvolvimento saudáveis.

Quais podem ser os gatilhos desta problemática?
Os gatilhos da seletividade alimentar podem ser diversos e variados, influenciando as preferências alimentares e os hábitos de consumo de uma criança. Traumas, como experiências negativas durante a alimentação, podem desencadear associações negativas a certos alimentos. Por exemplo, se uma criança se engasga com um alimento vermelho, ela pode associar essa cor a uma situação de perigo e desenvolver aversão a alimentos vermelhos. Além disso, a sensibilidade individual desempenha um papel importante. Algumas crianças são mais sensíveis a texturas específicas ou a sabores que podem causar repulsa.
A generalização de experiências negativas pode agravar a seletividade alimentar, levando a uma rejeição mais ampla de alimentos.
O facilitismo por parte dos pais também pode ser um gatilho significativo. Quando os pais cedem à preferência da criança por alimentos processados, por exemplo, em detrimento de opções nutritivas, isso pode perpetuar hábitos alimentares restritos e pouco saudáveis. É essencial reconhecer que a alimentação pode ser uma atividade prazerosa e criativa, incentivando a exploração de novos alimentos de maneira lúdica e envolvente. Estratégias como brincar com alimentos, criar histórias envolvendo refeições e manter uma atmosfera positiva durante as refeições podem ajudar a promover uma relação mais saudável com a comida. Além disso, evitar distrações como o uso de dispositivos eletrónicos durante as refeições pode permitir que as crianças se concentrem melhor nos alimentos e desenvolvam uma apreciação dos sabores e texturas.

“Estratégias como brincar com alimentos, criar histórias envolvendo refeições e manter uma atmosfera positiva durante as refeições podem ajudar a promover uma relação mais saudável com a comida.”
Quais são as consequências associadas à seletividade alimentar?
As consequências da seletividade alimentar podem ser significativas e variadas, afetando não apenas a saúde física, mas também o bem-estar emocional da criança, da família e de todos os pares que se envolvem nas refeições.
Acompanhamos situações em que as crianças desenvolvem hábitos alimentares extremamente restritivos, limitando-se a consumir apenas alguns alimentos, como a sopa. Esta tendência é preocupante, pois a falta de diversidade na dieta pode resultar em deficiências nutricionais, comprometendo o crescimento e o desenvolvimento saudáveis.
É importante sublinhar que a seletividade alimentar pode ser muitas vezes resultado das dificuldades enfrentadas pelos pais na introdução de uma variedade de alimentos desde cedo. Quando não são introduzidos novos alimentos dentro de prazos adequados, a seletividade pode agravar-se ao longo do tempo, levando a uma recusa crescente de alimentos e à exclusão de grupos alimentares essenciais.
À medida que as crianças crescem, é comum que se tornem mais seletivas e teimosas em relação à alimentação, o que pode dificultar ainda mais a diversificação da dieta. Para combater essa tendência, é fundamental adotar uma abordagem multidisciplinar, procurando não só melhorar os hábitos alimentares, mas também abordar quaisquer questões emocionais ou comportamentais subjacentes que possam contribuir para a seletividade alimentar.

Quando é que os pais devem começar a procurar ajuda?
Os pais devem começar a procurar ajuda o mais cedo possível, preferencialmente assim que perceberem sinais de dificuldades alimentares. Em muitos casos, os problemas alimentares podem manifestar-se desde os primeiros meses de vida. Por exemplo, se a criança demonstrar dificuldade em aceitar a sopa por volta dos seis meses de idade, é importante procurar orientação profissional. Se essa dificuldade persistir até aos oito ou nove meses, ainda há tempo para intervir de forma eficaz, pois cada criança tem o seu próprio ritmo de desenvolvimento alimentar.
No entanto, se não forem introduzidos novos alimentos até ao primeiro ano de vida, é crucial procurar ajuda especializada. Quanto mais cedo for iniciada a intervenção, menores serão as hipóteses de a seletividade alimentar se intensificar, evitando complicações como hipersensibilidade alimentar e problemas nutricionais.
Muitas vezes, os sinais iniciais de seletividade alimentar podem passar despercebidos. Por exemplo, quando a criança passa a preferir alimentos de texturas semelhantes ou da mesma categoria da pirâmide alimentar, isso pode ser um indicativo de que algo está errado e merece atenção.
É fundamental reconhecer que a seletividade alimentar não é apenas um problema nutricional, mas também comportamental, emocional e sensorial. Portanto, a equipa de intervenção geralmente inclui profissionais de áreas como psicologia, terapia da fala, terapia ocupacional e nutrição. A triagem inicial realizada por um profissional qualificado ajuda a direcionar a criança para as intervenções mais apropriadas, garantindo uma abordagem integrada e eficaz para lidar com a seletividade alimentar.

De que forma é feito o acompanhamento destas crianças?
Geralmente, os pais procuram ajuda profissional quando se sentem incapazes de lidar com os desafios alimentares enfrentados pelos filhos. Essa procura muitas vezes ocorre quando as famílias percebem que a seletividade alimentar está a impactar significativamente a qualidade de vida da criança e da família, interferindo em atividades sociais, como ir a restaurantes ou a casa de amigos.
Durante as sessões de terapia, o foco reside não só na introdução de novos alimentos, mas também no desenvolvimento da musculatura orofacial e da sensibilidade oral. Isso é especialmente importante, pois muitas crianças com seletividade alimentar apresentam músculos hipotónicos devido à predominância de alimentos pastosos na sua dieta, o que pode afetar negativamente o processo de mastigação e deglutição.
Os terapeutas trabalham em estreita colaboração com os pais para desenvolver estratégias personalizadas que procuram aumentar gradualmente a aceitação de diferentes alimentos pela criança. Isso pode incluir atividades sensoriais, como permitir que a criança explore texturas, cores e sabores de alimentos de forma não ameaçadora. Além disso, é enfatizada a importância de evitar a pressão para que a criança coma, pois isso pode causar traumas adicionais e piorar a seletividade alimentar.

“… a equipa de intervenção geralmente inclui profissionais de áreas como psicologia, terapia da fala, terapia ocupacional e nutrição”
Que tipo de estratégias são trabalhadas pelas diferentes especialidades?
Em primeiro lugar, os nutricionistas ajustam a alimentação da criança para garantir que as suas necessidades nutricionais sejam atendidas, embora a nutrição por si só não resolva a seletividade alimentar.
A terapia ocupacional concentra-se no corpo e nas sensações táteis e sensoriais relacionadas com a alimentação, promovendo a aceitação do alimento no corpo e encorajando a exploração sensorial através do contato com os alimentos. Nessa abordagem, a criança é incentivada a brincar com a comida, familiarizando-se com diferentes texturas, sabores e sensações.
Por outro lado, os terapeutas da fala trabalham o desenvolvimento das habilidades orais e motoras necessárias para uma alimentação saudável, incluindo a força muscular, a mastigação e a coordenação. Criamos jogos e atividades que auxiliam a criança a sentir-se mais confortável e confiante ao experimentar novos alimentos.
Por sua vez, a psicologia desempenha um papel crucial ao lidar com os aspetos comportamentais e emocionais associados à seletividade alimentar. Os psicólogos ajudam os pais a entender e a lidar com as dificuldades enfrentadas durante o processo de alimentação da criança, oferecendo apoio e orientação para garantir uma abordagem consistente e eficaz.
O objetivo é promover uma relação positiva com a comida, desenvolver competências alimentares saudáveis e melhorar a qualidade de vida da criança e da sua família.

Que casos de estudo acompanham?
A diversidade de casos que acompanhamos é ampla e abrange desde bebés a adultos. Um dos casos mais significativos envolveu uma criança que desenvolveu uma seletividade alimentar extrema, chegando ao ponto de recusar totalmente a ingestão de alimentos. Este comportamento preocupante foi um alerta para intervenção imediata. O tratamento foi gradual e exigiu um trabalho árduo e multidisciplinar. Um aspeto crucial desse processo foi a reconstrução da relação da criança com a comida, re-introduzindo gradualmente uma variedade de alimentos e trabalhando as suas competências alimentares e emocionais.

Hoje, esse caso de sucesso é uma inspiração, pois a criança, após anos de acompanhamento e tratamento, desenvolveu uma alimentação mais diversificada e saudável. É importante sublinhar que, mesmo após a conclusão do tratamento, é natural que algumas preferências alimentares persistam, mas o importante é garantir que a criança tenha uma alimentação equilibrada e adequada às suas necessidades nutricionais.
Cada caso é único e requer uma abordagem personalizada, com uma avaliação cuidadosa das necessidades e caraterísticas individuais da criança. Devemos compreender o que a leva a não comer. Será o ambiente? A presença de alguém? Ou será o alimento em si? O aroma? O paladar? A tonalidade? A temperatura? A consistência? A apresentação do alimento? A fraqueza muscular? A sensibilidade aumentada? Ou até mesmo o nome do alimento? Um trauma? Ou será que elementos distratores estão a interferir no momento?
É essencial realizar uma análise prévia e minuciosa antes de iniciar qualquer intervenção, permitindo uma compreensão mais profunda dos desafios enfrentados pela criança e pela família.

A multidisciplinaridade continua a ser a base do vosso trabalho que acontece dentro e ‘fora’ de portas, no contexto da criança?
A abordagem multidisciplinar é fundamental no nosso trabalho e estende-se além das paredes do consultório, integrando-se no contexto em que a criança está inserida. Cada terapeuta desempenha um papel único e complementar e é essencial que trabalhemos em conjunto, sem sobrepor as nossas áreas de atuação. Por exemplo, a psicóloga desempenha um papel crucial ao preparar a criança para enfrentar novas fases do tratamento, utilizando recursos como histórias que abordam questões alimentares, enquanto a terapeuta ocupacional se concentra em envolver a criança em atividades lúdicas relacionadas com a comida. A nossa equipa de terapia da fala entra em ação na etapa final, facilitando a introdução gradual de novos alimentos.
Além disso, é importante que os pais partilhem connosco vídeos do comportamento alimentar das crianças em casa, pois isso permite-nos entender melhor o contexto em que ocorrem as dificuldades alimentares. Por vezes, percebemos que o problema não está no alimento em si, mas sim no ambiente onde a criança se alimenta. Por exemplo, ela pode estar habituada a comer no chão ou numa mesa diferente da mesa familiar. Na escola, enfrentamos desafios adicionais e oferecemos orientações aos pais sobre como lidar com a alimentação em contexto escolar, garantindo que haja colaboração entre todas as partes envolvidas.

O nosso trabalho vai além do consultório, pois reconhecemos a importância de observar e analisar o comportamento alimentar da criança em diversos contextos, podemos acompanhar as crianças na refeição na escola, ou até no restaurante. Isso permite-nos adaptar o tratamento de forma mais eficaz, levando em consideração as preferências, tolerâncias e aversões alimentares da criança em diferentes situações.
As situações são inúmeras, recordo-me, por exemplo, do caso de um menino cuja seletividade alimentar estava relacionada com os hábitos alimentares dos pais. Tivemos de trabalhar não só com a criança, mas também com a família, estabelecendo regras claras e incentivando uma mudança de comportamento alimentar para todos. O envolvimento dos pais é essencial, mas também é importante ajudá-los a encontrar um equilíbrio entre permitir que a criança experimente e aprenda a autonomia na alimentação, sem deixar de impor limites quando necessário.